Vivenciamos na
prática, há uma semana, os efeitos de uma greve geral em todo o país. O
movimento dos caminhoneiros teve o condão de travar quase toda a atividade
produtiva, ao bloquear a circulação de mercadorias, em especial ao cortar o
abastecimento de combustíveis de norte a sul. É difícil localizar um setor que
não tenha sido por ele afetado, seja por falta de suprimentos, seja pela
dificuldade de seus trabalhadores se deslocarem.
A capilarização da
greve se dá pelo papel estratégico que tem o transporte rodoviário nestas
terras. Em situações anteriores, nas quais outras modalidades de deslocamentos
eram centrais para a economia, as características eram semelhantes.
BONDES, TRENS E
NAVIOS
A histórica greve de
1917, em São Paulo, só se torna geral quando, duas semanas após sua deflagração
nas fábricas, os condutores de bonde cruzam os braços. Ao longo das décadas
seguintes, a ferrovia e o sistema de portos se tornaram nevrálgicos em uma
economia agroexportadora. Não à toa, o PCB - Partido Comunista Brasileiro -
sempre teve numerosas bases nas categorias ligadas a tais setores.
Em uma economia
regida pelo fordismo e por contratos de trabalho mais definidos - em especial
após o advento da CLT, entre 1943 e 1964 - era muito mais simples verificar
quando existia greve e quando havia locaute nas mobilizações.
A categoria dos
caminhoneiros não é exatamente uma "categoria", no sentido usual do
termo. Ela é múltipla e variada em sua composição. Há autônomos (cerca de 70%),
funcionários de empresas e empresários, num universo de mais de um milhão de
trabalhadores mal remunerados. Pelas características de trabalho solitário com
vínculos precários, não há organização sindical convergente ou definida. Há
contratos intermitentes, com e sem carteira assinada, jornadas indefinidas,
metas informais, riscos de toda ordem (a começar pelo de vida), submissão
variada a chantagem e corrupção por parte dos serviços de segurança
rodoviários, longos períodos fora do lar e forte tendência ao individualismo.
Em outras palavras,
parece ser a categoria dos sonhos dos formuladores da reforma trabalhista do
governo Temer. Que este contingente de homens e mulheres (minoria) consiga
coordenar e deflagar um movimento como este, é um tento admirável.
O DELÍRIO DA GREVE
"PURA"
Nessas condições, é
puro delírio alguém imaginar ser possível a realização de uma greve "pura",
apenas de trabalhadores, com pautas muito definidas e articuladas. É justamente
aqui que as características de greve e locaute se superpõem num mesmo movimento
e se estabelece - através de inúmeros dirigentes - uma disputa encarniçada pela
direção das reivindicações.
Esse enfrentamento
interno ficou claro na quinta-feira, quando representantes do governo federal
se reuniram com delegações dos caminhoneiros. Oito entidades levaram a Brasília
suas pautas. Eram elas:
1. Redução a zero da
Cide e do PIS/Cofins sobre o óleo diesel
2. Extinção da
política de reajuste diário dos preços do combustível
3. Suspensão da
cobrança de pedágio sobre o eixo suspenso de caminhões vazios
4. Criação de um piso
mínimo para o frete.
É curioso que não
haja nenhuma demanda trabalhista entre esses pontos e outros fechados com os
golpistas de Brasília. Nada de salário, condições de jornada etc. Como era de
se esperar, algo deu errado. O portal da Globo informou o seguinte, naquela
tarde:
"O presidente da
Associação Brasileira dos Caminhoneiros (Abcam), José da Fonseca Lopes, deixou
a reunião no Planalto por volta das 15h30. Na saída, ele afirmou que a entidade
não aceitava a proposta do governo. A Abcam diz representar 650 mil caminhoneiros".
O movimento continuou
firme.
EMPRESÁRIOS E
TRABALHADORES
Ao que parece, o
setor patronal - com sua pauta liberal de isenção tributária - se acertou com o
Planalto, deixando os trabalhadores de fora. É possível que isso explique - é
apenas uma especulação - o fato de a mídia e a administração federal não terem,
nos dois primeiros dias, investido contra os paredistas. Imaginavam se acertar
com os patrões e ponto final. Havia um fator adicional para isso: a demanda
pela redução dos preços dos combustíveis tornou o movimento simpático à maioria
da população. Não é pouca coisa.
Firmado o acordo com
a turma do locaute - que nada garante, além de uma trégua de trinta dias,
suficiente para desmobilizar as ações nas estradas -, os meios de comunicação e
o governo mostraram suas garras. Teve início a demonização dos caminhoneiros
pelo Jornal Nacional e pelos programas policialescos e noticiosos (não há
fronteira nítida entre eles) de outras emissoras.
Do lado oficial, as
feras foram soltas na tarde de sexta. Primeiro, o governo valeu-se de seu
contínuo no STF, o prestativo Alexandre de Moraes, para decretar a ilegalidade
do movimento, com a adoção de multas pesadíssimas de R$ 100 mil por hora, caso
as estradas não fossem imediatamente desobstruídas. Em segundo, veio o
espetáculo: Garantia de Lei e da Ordem (GLO), em todo o Brasil. Em português
claro, uma virtual intervenção militar com poder de polícia para retirar os
caminhões do meio das pistas.
HÁ LADO NESSA
HISTÓRIA
Apesar do caráter
confuso das manifestações caminhoneiras, não pode haver a menor dúvida por
parte da esquerda sobre o lado a se perfilar. É possível que, dado o grau de
repressão e do bombardeio midiático, haja descontentamento popular com a falta
de produtos e serviços e o movimento reflua.
Mas o desgaste
governamental pela manutenção da política de preços da Petrobrás - que vincula
valores internos à variação cambial - começa a ficar escancarado. Ou seja, para
contentar algumas centenas de acionistas, o governo golpista - encabeçado pela
figura luminar de Pedro Parente - não titubeia em submeter a maioria da
população brasileira a grossa chantagem.
A tensão social se
acumula, sem muita chance de se reduzir, dada as decepcionantes previsões para
o futuro da economia brasileira. Professores do ensino privado entram em greve
em São Paulo e Minas, petroleiros ameaçam parar e outras categorias se articulam.
Estagnação econômica
com crise social é coisa - a História já provou - de altíssima octanagem.
GGN O JORNAL DE TODO O BRASIL
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