domingo, 2 de abril de 2017

Pior seca em 73 anos traz fome e faz população dividir água com animais

Da porta de casa, um cenário desolador. O olhar atento de seu Antônio Ferreira do Sá se perde no horizonte em meio a um sentimento de angústia quando se percebe que o verde que dá vida à natureza a seu redor vai aos poucos desaparecendo, sendo devastado pela seca. De um lado, o solo árido não permite que as plantações vinguem; de outro, animais debilitados por fome e sede se reduzem a carcaças expostas aos urubus. É nesse contexto que o homem do campo de 70 anos, hoje um dos mais de 4,1 milhões afetados pela estiagem prolongada que assola a Bahia há cinco anos, tenta tocar a "vida pra lá de difícil", como ele mesmo diz.
G1 mostra, em uma série de reportagens, uma pequena amostra da realidade vivida na região - e as muitas saídas que encontra para conseguir sobreviver. Confira aqui as histórias, contadas em cada um dos nove estados do Nordeste brasileiro.
Morador de Barrocas, no distrito de Maria Quitéria, pequeno povoado na zona rural de Feira de Santana, segunda maior cidade do estado (a cerca de 100 quilômetros de Salvador), Antônio precisa de uma pausa longa para puxar na memória se já viveu situação parecida. Mas não se recorda. "Tenho 70 anos e não lembro de seca aqui como essa. Ouvi falar de uma em 1932, quando nem tinha ainda nascido. A daquele tempo, segundo o povo conta, foi pior, porque morreram muito mais bichos e ficava todo mundo quase sem nada. Além disso, naquela época não tinha água da Embasa [Empresa Baiana de Águas e Saneamento] e hoje já tem".O último período de estiagem "brava" de que o agricultor aposentado ouviu falar coincide com a época em que Graciliano Ramos publicava "Vidas secas" (1938), narrativa que se passa no sertão nordestino, marcado pelas chuvas escassas e irregulares, e conta a história do vaqueiro Fabiano, que, de tempos em tempos, era obrigado a se mudar com a família e a cadela Baleia de regiões castigadas pela seca em busca de sobrevivência.
A Feira de Santana de seu Antônio, apesar do apelido de "Princesa do Sertão" dado pelo também escritor Ruy Barbosa por ser a cidade mais importante do interior do estado, fica localizada no agreste baiano, mas a "miséria" e a "desumanização" de que fala Graciliano para descrever os impactos da estiagem no sertão nordestino à época podem muito bem ser aplicadas à realidade atual de moradores do município.
O Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema) atesta que, desde que passou a reunir maior volume de dados meteorológicos, a partir de 1960, não houve estiagem como a vivida hoje. Mas a última seca tão prolongada e perversa como a atual, segundo dados oficiais, ocorreu mesmo antes do nascimento de seu Antônio, só que na década de 40. O Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, crava que o quadro atual, não só na Bahia como em todo o Nordeste, é o pior em 73 anos – o último período crítico, segundo o órgão, durou três anos, entre 1941 e 1944.Como reflexo da estiagem, conforme a Superintendência de Proteção e Defesa Civil (Sudec), a Bahia está atualmente com 218 dos seus 417 municípios com situação de emergência decretada – 21 deles com racionamento de água. A situação crítica aflinge pequenas e grandes cidades, como Feira de Santana, Vitória da Conquista, na região sudoeste, e Juazeiro, na região norte.
Ao contrário dos personagens de "Vidas secas", no entanto, seu Antônio não cogita sair do pedaço de chão em meio ao semiárido onde nasceu e foi criado. Tem esperanças de que, a qualquer momento, uma "chuva boa" caia e mude a realidade. "Tem quase um ano [que choveu]. A última chuva foi em outubro, mas foi pouca coisa. Chuva para trazer água aqui tem que ser de trovoada. Estamos esperando, mas até agora não chegou ainda. Mas daqui para essa semana ela vem. Pelas nuvens você conhece. Tem que vim porque Deus quer que venha. Se não vier, a gente tem que viver de qualquer jeito", diz.No quintal de seu Antônio, somente um cajueiro e alguns mandacarus, plantas mais resistentes à estiagem prolongada, conseguem se manter vivos. Um pé de pinha também ainda resiste com poucas folhas verdes, mas já murchas, e frutos apodrecidos que não servem sequer aos pássaros. "Eu plantava feijão, milho, mandioca, mas parei tem um bocado de tempo. Tá difícil", afirma.
"Aqui, tenho aquela vaca ali, que é cismada, o bezerro e cinco cabeças de ovelhas. E tem essas galinhas também, mas são de um irmão. Um bezerro que era meu morreu na semana passada. Estava doente. Cerrou a boca e não estava querendo comer nada. Para os que restaram, a gente dá farelo de milho, cevada, mandacaru, pindoba. Tem que comprar ração, mas é caro. Se fosse achado de graça seria bom. Para beber, dou água da Embasa [empresa estadual de abastecimento de água], a mesma que bebo. A fonte que tinha [onde os bichos bebiam] secou essa semana", diz. O idoso também armazena no quintal dezenas de garrafas pet com água para dar aos bichos, caso a encanada pare de chegar. "Tem umas 70 [garrafas]. Nunca se sabe, não é?".O rastro da seca começa a ser percebido logo quando se sai do centro da cidade e se pega uma estrada de terra que leva até o povoado de Barrocas, no distrito de Maria Quitéria, onde moram Antônio e outras cerca de 200 pessoas. Em toda a zona rural de Feira de Santana, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), vivem 64 mil dos cerca de 618 mil habitantes do município. De carro, o trajeto pode ser feito em cerca de 40 minutos. No percurso, é possível observar vegetação e aguadas secas, além de animais mortos.
De longe, também se avista uma poeira branca envolvendo uma carroça, que, diariamente, sobe e desce as ladeiras do povoado. Guiando o cavalo que puxa o veículo está Avelino Barbosa da Silva, de 51 anos. "Carrego palma para dar para as ovelhas, carrego água. Não tenho horário para começar a trabalhar, não. A hora que eu acordo eu estou trabalhando. Acordo umas 3h30 a 4h da madrugada, começo a trabalhar e só paro por volta das 17h", conta.Vizinho de seu Antônio, Avelino diz que faz inúmeras viagens por dia para tentar ganhar dinheiro, manter os animais vivos e ter o que comer. "Eu pego coisas para os animais comerem. Levo para a minha roça e também faço o trabalho para os outros. Eu vivo disso aqui, do trabalho que eu faço. Mas a seca afeta o dia-a-dia como um todo, principalmente os bichinhos que ficam sofrendo no sol quente e na seca. O que ameniza um pouco é a água da Embasa, que aqui cai cinco dias e passa 15 dias ou um mês sem cair. Da idade que eu estou, eu nunca vi uma seca como a desse ano aqui. Essa foi das piores que teve. Só Deus agora para ajudar", diz, antes de seguir viagem, apressado, debaixo do sol escaldante.
A Embasa informou que estão sendo testadas intervenções para regularizar e ampliar o abastecimento de água fornecida à localidade. Segundo a empresa, uma das medidas a serem adotadas será a duplicação de 16 km de adutora para parte da zona rural da cidade (distritos de Tiquaruçu, Matinha e Maria Quitéria) e para os municípios de Santa Bárbara, Tanquinho e Santanópolis, que, assim, como Feira de Santana, estão com situação de emergência decretada pela estiagem. A obra, conforme a Embasa, está prestes a ser licitada, com investimento de R$ 4,7 milhões.fonte g1 ba

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